Pensando na viagem que estamos planejando para Senador Pompeu, Ceará - cidade natal de minha mãe, pesquisei um pouco da nossa história e fiquei extremamente surpresa ao saber que nosso estado têm histórias de arrepiar, que envergonham seus governantes e estes buscam esconder o passado sombrio no esquecimento.Fiquei triste por saber que tivemos nosso próprio holocausto baseado na discriminação contra os pobres sertanejos e pra mim, o pior de tudo é saber que tudo aconteceu há tão pouco tempo... Abaixo vou transcrever o texto que li e a fonte. Espero que gostem e que compartilhem com seus amigos e familiares esta triste história para que ela não caia no esquecimento, assim como tantas outras tragédias de nosso país..
Campos de
Concentração no Ceará: Mais cruéis que a seca
Construídos
no Ceará para manter os flagelados longe da capital, os campos de
concentração prometiam trabalho, comida e atendimento médico. Ali, os
sertanejos encontraram fome, sede, doenças e morte
Por: Cida de Oliveira*
A fé e a emoção unem os mais de 6.000
romeiros, quase todos vestidos de branco. Partem da igreja matriz do município
de Senador Pompeu e percorrem mais de três quilômetros de estrada de terra até
a capela do Cemitério da Barragem. Acendem velas e rezam pela alma dos
enterrados ali. Acreditam que sejam intercessores de graças alcançadas. A
procissão ocorre há 28 anos e mantém viva a memória de uma das páginas mais
cruéis da história brasileira: a morte de milhares de flagelados da seca de
1932 em campos de concentração construídos no estado pelo governo cearense.
O governador Roberto Carneiro de Mendonça, interventor nomeado por Getúlio
Vargas, atendia aos interesses da elite política e coronelista da ocasião. E
Vargas precisava de apoio ao processo que levaria ao Estado Novo, posto em
andamento a partir do golpe de 1930.
A 270 quilômetros de Fortaleza, Senador
Pompeu abrigou um desses campos. Entre 1932 e 1933, mais de 16 mil pessoas
foram confinadas nos casarões do canteiro de obras da barragem do açude Patu –
cuja construção começou em 1919, paralisada em 1923, foi retomada em 1984 e,
finalmente concluída em 1997. O tombamento dos casarões em ruínas, bem como da
própria procissão, é uma luta antiga. “Preservá-los é perpetuar a lembrança dos
mais de mil enterrados aqui e de todas as vítimas de outros campos, da seca, da
fome, de doenças e do descaso do governo”, diz o advogado e escritor Valdecy
Alves, um dos articuladores do Fórum Popular do Patrimônio Cultural e Ambiental
de Senador Pompeu.
A professora Kênia Sousa Rios, do
Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), conta que a
ideia desses campos surgiu bem antes de 1932. Um deles foi construído em
Fortaleza em 1915, ano marcado por longa estiagem. Mencionado no romance O
Quinze, de Rachel de Queiroz, o espaço já tinha o objetivo de poupar as elites
da capital cearense do incômodo convívio com retirantes sem trabalho, famintos
e doentes, que para lá iam em busca de meios de sobrevivência sempre que a
estiagem se prolongava. Segundo a professora, o sanitarista Rodolfo Teófilo
(1853-1932), grande cronista da seca, relatou que em 1877 cerca de 110 mil
sertanejos deixaram a própria casa com a esperança de vida em Fortaleza. Pelo
menos 400, porém, eram encontrados mortos todo dia nas ruas da cidade.
Para proteger a elite da capital dos
“dissabores” dessa experiência migratória, o governo cearense desenvolveu o
primeiro projeto de campos de concentração em 1915. O governador era Benjamin
Liberato Barroso e seu vice, o padre Cícero Romão Batista, mas as oligarquias
políticas cearenses eram lideradas pelo senador José Gomes Pinheiro Machado.
Não faltavam inspiração e apoio para o método higienista das elites, uma vez
que era forte a presença de ligas religiosas e até mesmo operárias de
inspiração conservadora.
Isca
Com a seca de 1932, aprimorou-se o
projeto de 1915. Foram construídos sete campos. Em Fortaleza havia dois, para
confinar retirantes que lá já estavam. Ambos chegaram a ter 1.800 presos. Os de
Crato e de Senador Pompeu receberam mais de 16 mil cada um; Quixeramobim,
4.500; Cariús, 28 mil; e Ipu, cerca de 6.500. “Os sertanejos eram atraídos por
promessas de trabalho, alojamento, alimentação e serviço de saúde”, afirma
Kênia Rios. Mas a multidão era concentrada em espaços precários. Tinha a cabeça
raspada, usava roupas feitas com sacos de farinha e trabalhava praticamente em
troca de comida.
Os homens lidavam principalmente com
marcenaria e construção de tijolos, as mulheres na fabricação de sabão e as
crianças, que não tinham escola, podiam trabalhar e aprender artes e ofícios.
Faltavam comida, água e remédios. Soldados armados detinham aqueles que
tentavam fugir. Os campos mantinham locais para punir e encarcerar os rebeldes.
“Atestados de óbito mostram que no campo de Ipu a fome e doenças como cólera
chegavam a matar oito pessoas por dia”, destaca a historiadora.
Registros oficiais contabilizam mais de
60 mil cearenses mortos nesses campos. Estudiosos creem que morriam mais
pessoas em função deles que da seca. “O flagelo era maior lá dentro, com
tamanha concentração de gente doente. Por maior que fosse a seca, em liberdade
o sertanejo poderia caçar ou se alimentar de frutos silvestres em muitas
regiões, como no Cariri (região do Ceará)”, ressalta Valdecy Alves.
O advogado Otoniel Ajala Dourado, da
ONG SOS Direitos Humanos, afirma que os flagelados eram aprisionados por ser
pobres, forçados a trabalhar para prefeituras, sem remuneração, e torturados
por se rebelar. Desde 2009 a entidade move uma ação civil pública contra a
União e o estado do Ceará por danos morais às vítimas do crime, imprescritível,
de lesa-humanidade e genocídio. A indenização pedida é de R$ 500 mil para
sobreviventes e familiares dos mortos. No mesmo ano, o juiz substituto da 6ª
Vara da Justiça Federal no Ceará extinguiu a ação sem julgar seu mérito. Nova
ação foi protocolada e está para ser julgada. A denúncia foi apresentada também
à Comissão Internacional dos Direitos Humanos, em Nova York.
Em 1933, quando as chuvas voltaram a
cair, os campos foram desativados e os sobreviventes deveriam ser encaminhados
de volta aos locais de origem. Nem todos, porém, retornaram. Em Fortaleza, a
maioria ficou e deu início a uma das maiores favelas, a Moura Brasil, em
Pirambu. “A violência desses campos reflete os primeiros anos da República, a
crueldade com os pobres e com os negros”, diz Kênia Rios, autora do livro
Campos de Concentração no Ceará – Isolamento e Poder na Seca de 1932, que
inspirou documentários e peças teatrais. Para a pesquisadora, o episódio não
findou em 1933. Ainda há projetos políticos que levam às praticas de repressão,
humilhação e segregação. “Exemplos são os conjuntos habitacionais construídos
em cidades-dormitório para afastar os pobres do usufruto dos bens culturais e
de lazer oferecidos pelas cidades. Desestimulados pelo cansaço da semana de
trabalho, pela distância e pelo transporte ruim, os mais humildes acabam
deixando para os ricos o que as cidades oferecem de melhor.”
Massacre
Quatro anos depois do fim de seu campo
de concentração, Crato, no interior do estado, voltou a ser palco de violência
contra os direitos humanos. Segundo historiadores, as casas localizadas no
Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foram destruídas por forças do
Exército e da polícia do estado. A comunidade não resistiu, como em Canudos. Os
militares metralharam de aviões o pouco que sobrou e, em terra, com fuzis,
revólveres, pistolas, facas e facões, liquidaram os sobreviventes. Cerca de mil
moradores morreram e foram enterrados em vala comum. Alguns meses depois, foram
encontrados 16 crânios de crianças numa área da Chapada do Araripe.
A SOS Direitos Humanos move ação civil
pública contra a União e o estado do Ceará. A ação cobra do poder público: a
entrega dos documentos de identidade dos mortos, os documentos secretos da ação
militar, a localização da vala comum, a lista de todos que participaram da ação
criminosa, exames de DNA dos restos mortais para identificação e enterro digno
e indenizações a sobreviventes e seus descendentes. A ONG defende ainda a
inclusão do episódio em livros de História de todo o país.
O sítio Caldeirão da Santa Cruz do
Deserto, chefiado pelo beato negro José Lourenço, representou para as elites
cearenses um “antro de fanatismo e comunismo primitivo”. Já para seus
ex-moradores, era um reduto de “bondade cristã”. O Caldeirão tinha no trabalho
coletivo e na religiosidade pilares da organização social. O fruto do trabalho
era dividido conforme a necessidade de cada família, constituindo-se assim numa
economia alternativa. Mais que “fanáticos desprovidos de qualquer organização racional”,
seus habitantes promoveram uma política de convívio com a natureza, desfrutavam
de água e alimentos com fartura. A autonomia da comunidade era um modelo
ameaçador para as relações de exploração vigentes.
Lembranças do Holocausto
Mãos e rosto enrugados, olhar profundo,
voz miúda, corpo castigado. Aos 84 anos, uma das últimas sobreviventes do campo
de concentração de Senador Pompeu, Luiza Pereira, dona Lô, ainda recorda
passagens angustiantes do cativeiro erguido no sertão do Ceará, comparado aos campos
nazistas. Única herdeira viva dos oito filhos do casal de agricultores José
Pereira e Josefa Bezerra, todos de Tauá, dona Lô continua solteira, morando em
uma casa modesta próxima ao centro dessa cidade do sul do estado, outrora
próspera devido à infraestrutura ferroviária, no corredor de escoamento do
“ouro branco”, como eram conhecidas as plumas de algodão colhidas na região.
A passageira do “curral do Governo”,
como também eram conhecidas as áreas de agrupamento de retirantes espalhadas
pelo Ceará naquele ano de 1932, ainda fala com lucidez e firmeza sobre a época.
Ao registrar o sofrimento dos pais e da irmã, nascida e morta no campo onde
mais tarde se ergueu a barragem do açude Patu, revela o trauma que a fez
abdicar de se casar e ter filhos.
“Tenho muita coisa pra dizer não. Minha
mãe não deixava nós desgrudar dos pé dela. Era muita gente. Ela tinha medo de
alguém carregar eu e meu irmão. Do resto todo mundo já sabe. Perdi a conta de
quantas vez já repeti tudo isso. O sofrimento foi medonho… Quando chegamos
neste lugar, após caminhada de 16 léguas, deitamos ali mesmo, no chão.
Exaustos, sem ter o que comer, minha mãe ferveu água para passar a fome. Era
apenas o começo dessa miséria que nunca esqueci… Desesperado, meu pai resolveu
carregar a gente de Tauá para cá (Senador Pompeu) à procura do que comer e
beber. Mas se estava ruim ficou pior.”
Carmélia Gomes Pinheiro, de 87 anos,
foi criada em Senador Pompeu, na Vila da Comissão, onde ainda mora. Seu pai,
Antônio Gomes da Silva, foi vigia noturno do campo. Ela tinha 8 anos quando
começou a ver famílias chegando de todos os cantos do sertão. Pouco saía. Os
pais ficavam preocupados. Das colinas do outro lado da vila sabia apenas de
imaginar e de ouvir as descrições da irmã, 12 anos mais velha, que às vezes
doava alimentos aos flagelados.
“A maioria era desviada. Medicamentos,
chegavam poucos para atender a tantos doentes. Roupas não eram enviadas. Quando
as vestimentas já estavam aos trapos, os corpos eram cobertos com sacos de
mantimentos. Muitos sacos eram costurados e transformados em camisões. E era
assim que a maioria era sepultada. Com receio de arrancarem o fígado dos mortos
quando eram jogados nas valetas do cemitério, muitas famílias enterravam seus
mortos no mato, escondido”, conta. Carmélia lembra um momento marcante naquele
ano da concentração, quando caminhando pelo campo viu corpos ainda não
enterrados. Ficou paralisada. “Vi uma lagartixa saindo de dentro da boca de um
dos mortos.”
(*Cida de Oliveira – Especial para a
Rede Brasil Atual, reproduzido por Fato Expresso)
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